Seu lar inteiro
cheirava como uma estranha guloseima, parecia algo adocicado saindo do forno.
Chegou com uma sensação esquisita no corpo, o plantão noturno sempre é
terrível. Aquele tinha sido até sonolento, não lembrava muito como o tempo
passou rápido. Cuidar de crianças doentes era ruim, em estado terminal, pior.
Seu fiel gato
não respondeu ao chamado, normalmente, antes de virar a chave já estaria
miando. Os móveis pareciam intocados, mas o carpete, que forrava o assoalho
velho e feio de madeira do apartamento, tinha uma estranha nódoa. Algo que
contrastava com o bege claro saltou aos olhos. Viu que era mancha de líquido,
como se as fibras tivessem sido grudadas por algo pastoso e melado. O coração
deu alguns saltos e os sentidos se ajustaram: perigo. Algo errado acontecera. A
mente nublou um pouco. Os sentidos inebriados pelo odor.
O cheiro doce
era mais intenso na cozinha, a mesa e o fogão pareciam normais, mas as facas
não. Manchadas, algo escuro. Um pavor gelou o corpo, não percebeu gotas de
calda e pó de caramelo pelo chão. Correu para o banheiro, sentia que o espelho
daria respostas. O espelho do banheiro deu os primeiros sinais de que algo
estava pior do que a imaginação poderia cogitar. Seu rosto escorria. Não como
carne que se deforma, mas como uma pintura doce feita com caldas e cremes. Era
belo, fascinante, ao mesmo tempo horrível e perturbador.
Lábios e olhos
escorriam e pulsavam pela face. Tentou gritar, mas percebeu que a língua era um
amontoado de massa informe e pulsante dentro da boca. O cheiro de açúcar e
doçura vinha do próprio corpo. Se despiu em frente ao espelho. Mamilos, grandes
lábios e até o umbigo tinham aquele aspecto estranho. Era como uma escultura de
pasta doce que derretia. Derretia e pulsava. Voltava à forma original para
derreter novamente num ciclo que lhe nauseou.
Sabia que não
era uma alucinação, entretanto, tinha a certeza de que ninguém a vira assim
durante o trabalho. Como se houvesse uma ilusão que mostrasse aos outros seu
antigo eu, enquanto o novo se transformava em algo repulsivamente belo e doce.
A mente começou
a clarear após os choques, a mão sangrou bastante, mas o sangue não escorria da
forma de sempre. O soco quebrou o espelho. A primeira lágrima tentou escorrer,
também voltou ao olho, desta vez, refletida em vários fragmentos do espelho
quebrado que ainda se mantinha fiel à moldura. Suas lágrimas já não eram
salgadas, mas de calda, vibrantes.
Lembrou da mãe
falando que a família tinha sangue das velhas bruxas das florestas escuras; de
sua avó contando, orgulhosa, que a avó da avó tinha uma casa que parecia feita
de doces. Lembrou da fome da primeira metamorfose no dia anterior e como aquilo
lhe custou o gato e a fez exterminar algumas vidas da ala onde trabalha.
Relembrou o que era.
Recobrou
memórias, até mesmo coisas que não sabia, mas a memória das ancestrais fazia
brotar, como uma fonte de imagens e saberes de pactos, selos, ritos. A
manutenção da longevidade de uma vida doce ao custo da alma de algumas
criancinhas.
Concluiu que
precisava de um novo gato. Desta vez, não o comeria. O hálito das crianças era
uma alimentação muito melhor. Gargalhou.
Texto: Filipe Tassoni
Revisão: Morrigan Ankh
Imagem: localizada nos motores de busca, não conseguimos os créditos.
Texto: Filipe Tassoni
Revisão: Morrigan Ankh
Imagem: localizada nos motores de busca, não conseguimos os créditos.
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