domingo, 19 de abril de 2020

Doçura





Seu lar inteiro cheirava como uma estranha guloseima, parecia algo adocicado saindo do forno. Chegou com uma sensação esquisita no corpo, o plantão noturno sempre é terrível. Aquele tinha sido até sonolento, não lembrava muito como o tempo passou rápido. Cuidar de crianças doentes era ruim, em estado terminal, pior.
Seu fiel gato não respondeu ao chamado, normalmente, antes de virar a chave já estaria miando. Os móveis pareciam intocados, mas o carpete, que forrava o assoalho velho e feio de madeira do apartamento, tinha uma estranha nódoa. Algo que contrastava com o bege claro saltou aos olhos. Viu que era mancha de líquido, como se as fibras tivessem sido grudadas por algo pastoso e melado. O coração deu alguns saltos e os sentidos se ajustaram: perigo. Algo errado acontecera. A mente nublou um pouco. Os sentidos inebriados pelo odor.

O cheiro doce era mais intenso na cozinha, a mesa e o fogão pareciam normais, mas as facas não. Manchadas, algo escuro. Um pavor gelou o corpo, não percebeu gotas de calda e pó de caramelo pelo chão. Correu para o banheiro, sentia que o espelho daria respostas. O espelho do banheiro deu os primeiros sinais de que algo estava pior do que a imaginação poderia cogitar. Seu rosto escorria. Não como carne que se deforma, mas como uma pintura doce feita com caldas e cremes. Era belo, fascinante, ao mesmo tempo horrível e perturbador.

Lábios e olhos escorriam e pulsavam pela face. Tentou gritar, mas percebeu que a língua era um amontoado de massa informe e pulsante dentro da boca. O cheiro de açúcar e doçura vinha do próprio corpo. Se despiu em frente ao espelho. Mamilos, grandes lábios e até o umbigo tinham aquele aspecto estranho. Era como uma escultura de pasta doce que derretia. Derretia e pulsava. Voltava à forma original para derreter novamente num ciclo que lhe nauseou.

Sabia que não era uma alucinação, entretanto, tinha a certeza de que ninguém a vira assim durante o trabalho. Como se houvesse uma ilusão que mostrasse aos outros seu antigo eu, enquanto o novo se transformava em algo repulsivamente belo e doce.

A mente começou a clarear após os choques, a mão sangrou bastante, mas o sangue não escorria da forma de sempre. O soco quebrou o espelho. A primeira lágrima tentou escorrer, também voltou ao olho, desta vez, refletida em vários fragmentos do espelho quebrado que ainda se mantinha fiel à moldura. Suas lágrimas já não eram salgadas, mas de calda, vibrantes.

Lembrou da mãe falando que a família tinha sangue das velhas bruxas das florestas escuras; de sua avó contando, orgulhosa, que a avó da avó tinha uma casa que parecia feita de doces. Lembrou da fome da primeira metamorfose no dia anterior e como aquilo lhe custou o gato e a fez exterminar algumas vidas da ala onde trabalha. Relembrou o que era.
Recobrou memórias, até mesmo coisas que não sabia, mas a memória das ancestrais fazia brotar, como uma fonte de imagens e saberes de pactos, selos, ritos. A manutenção da longevidade de uma vida doce ao custo da alma de algumas criancinhas.
Concluiu que precisava de um novo gato. Desta vez, não o comeria. O hálito das crianças era uma alimentação muito melhor. Gargalhou.


Texto: Filipe Tassoni
Revisão: Morrigan Ankh
Imagem: localizada nos motores de busca, não conseguimos os créditos.

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