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terça-feira, 21 de abril de 2020

O bicho de um olho só






O bicho de um olho só

Nem meio da tarde e a mata parecia escura demais, era como se o sol tivesse receio de entrar ali. Melhor voltar, era o pensamento do caçador. Já estava embrenhado naqueles matos por tempo demais. Conhecia os caminhos da própria fazenda, se criou ali. Quantas vezes mesmo tinha pensado em voltar? Mal a ideia lhe chegava na cabeça e já sumia como se soprada, soprada como fumaça.

Foi adentrando mais, quanto mais avançava mais fundo e mais escuro ficava aquele rincão úmido. Não lembrava direito daquelas árvores e pedras recobertas por estranhas raízes retorcidas. Caçava para esquecer os negócios com os produtores de café. Caçava para aliviar a cabeça. Pensava, ainda, em voltar para casa grande e aliviar um pouco mais as frustrações nos quadris de alguma escrava. Queria matar a onça que andava pelas vizinhanças. A cabeça do bicho ficaria bonita pendura na sala de receber visitas. Era só matar e mandar os negros buscarem. Tinha muitos escravos, muito dinheiro e terras. Mas seu prazer de caçar era algo solitário. Algo que herdara do avô, diziam.

Mais uma vez sua atenção lhe permitiu um pensamento de alerta e pensou em voltar, rapidamente a ideia se perdeu nos profundos vales da mente. Pensava de maneira nebulosa, se enfiara numa parte da mata que nunca tinha estado. Parou para pensar e viu que o sol mal entrava em algumas partes do lugar. Ouviu a primeira pancada distante. Tensionou cada músculo, trancou a respiração e foi soltando devagar. A onça estaria pulando de um galho alto para o chão? Preparou a pose, preparou a arma para um tiro certeiro. Esperou tempo demais. Nada aconteceu. Quando percebeu já tinha começado a andar mais um pouco.

Andou mais, se afundou mais naquela escuridão verde. Estava perdido e já sabia disto, entretanto, ouviu novamente aquele mesmo barulho. Desta vez o matagal de folhas largas e miúdas farfalhou como se um vento desgarrado cruzasse bem perto dele. Mirou, tentou ver na penumbra do quase anoitecer. Tinha algo errado, pois em seus cálculos só passava uma hora na mata depois que almoçou.

Ouviu o barulho novamente, algo pesado parecia se jogar contra o chão. O som era forte como pisadas brutas nas raízes ou no chão úmido forrado de folhas podres. Em alguns momentos parecia sentir nos próprios pés o chão vibrar. Desta vez viu algo passar por entre os borrões verdes. Parecia um negro. Não os negros da fazenda. Algo escuro como a noite, um pedaço de escuridão veloz deslizava por entre os troncos num movimento estranho, era como se uma nesga de breu pulasse por entre a mata fechada. Entendeu logo que o barulho vinha daquela coisa. Sentiu um misto de pavor com ódio. O que um escravo fazia na mata? Preparou a espingarda mais uma vez. Agora queria sangrar o fujão e levar de arrasto para a senzala como seu pai muitas vezes fizera no passado.

Fazia tempo que não ouvia nem o pio dos pássaros ou o murmúrio dos insetos só existia o som daqueles passos estranhos que ecoavam pelo matagal, só percebeu que a coisa era mais rápida que um homem quando deu o primeiro tiro. Aos pulos e em movimentos ágeis demais, a criatura evitou não só o disparo como pareceu se dividir em outras formas iguais. Ainda se recuperando da surpresa ouviu a risada alta, não era riso de gente aquilo, não de gente ou coisa criada por Deus. Sentiu o suor gelar na pele quando mais risos vieram em resposta ao primeiro.

Estava cercado, as coisas saltitavam ao seu redor, já não se escondiam entre pedras e folhagens. Ele via seus corpos quase humanos, criaturas pequenas e grandes, todas parecendo esculpidas no mais preto carvão. Riam, gargalhavam enquanto o cercavam. Olhos vermelhos como brasas, nus e com as cabeças cobertas por algo que parecia um pano cor de sangue ou talvez um chumaço indecifrável um pedaço de algo desconhecido que vibrava e parecia ter movimento próprio. Carregavam em suas bocas coisas que pareciam cachimbos onde ardiam brasas com um brilho infernal.

E cada um deles, daqueles que lhe cercavam às gargalhadas, possuía apenas uma perna deformada e escamada que parecia brotar da altura de onde estaria o umbigo de um homem normal e, para finalizar o horror escamado, uma imensa garra que misturava algo como uma pata de ave com a de algum monstro formado da junção dos medos mais profundos.
Tentou atirar, tentou fugir, gritar era inútil pois tremia tanto que morderia a língua. As formas esguias e incansáveis continuavam o cerco ritmado aos rápidos pulos em seu redor. Deles emanava um cheiro estranho de fumo velho queimando, um fumo profano que, misturado ao pútrido odor da terra daquelas matas escuras, foi adormecendo as carnes do dono da fazenda. A paralisia foi devorando suas carnes, roubando seu equilíbrio até que caiu no meio do círculo incessante daqueles seres negros como azeviche. Ansiava por acordar daquele pesadelo, porém o tempo se arrastou.

A consciência ainda existia, o corpo jazia deitado, torto, no chão da mata por bastante tempo. Do solo vinha um frio tão intenso que atravessava as roupas, e assim, vulnerável sem conseguir se movimentar, percebeu que as criaturas pareciam dialogar em estranha língua. Ora assovios e ora pequenas gargalhadas, pareciam se entender e se desentender toda hora. Até que um deles se aproximou. O fazendeiro viu quando a criatura se curvou para chegar perto de seu rosto. O cheiro de coisa da noite e fumo da criatura lhe causou um pavor intenso que só foi menor do que veio a seguir. O ser esvaziou as brasas de seu cachimbo no olho direito do fazendeiro.


Se pudesse gritar, uivaria com plenos pulmões, se pudesse se contorcer, o faria de forma febril e desesperada, mas não conseguia nem fechar o olho. A brasa estalava por sobre o globo ocular e uma mistura de dor com uma coceira enlouquecedora lhe invadiu o cérebro. Não desmaiou ou adormeceu, ficou horas, talvez semanas, sofrendo naquele momento de noite que não acabava.

Quando o primeiro raio de sol penetrou a mata, os sacis já haviam partido. Do homem restava pouco menos do que um bicho, um bicho feio, torto e coberto de chagas asquerosas, um bicho com uma memória cheia de dor e sofrimento, um bicho de um olho só. 


Texto: Filipe Tassoni
Revisão: Morrigan Ankh
Imagem: encontrada na internet


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