sábado, 5 de setembro de 2020

Surpresas

   

Figueira no mato raízes no inferno


     Ficus organensis ou apenas Figueira do Mato, minha avó dizia que as raízes desta árvore mantinham as portas do inferno fechadas. Que, não importava onde se plantasse, as pontas das raízes sempre iam afundando até chegar numa porta de pedra onipresente. Cá estou, cabeça escorada na árvore das lendas das avós de minha família. Lua cheia no céu, chega a tingir de carmesim as poucas nuvens. Será que até a lua compartilha de minhas mágoas? Marília casa nesta noite. Marília... tanta dor, maldita Marília. Noite quente, noite infeliz. Não é amor, é ódio, raiva, talvez inveja da forma como conseguiu arrasar minha alma e ainda sair como vítima de toda situação. Faz bem escorar a cabeça na figueira do inferno e chorar. Logo a árvore será cortada. Marília venderá tudo, Carlos fará isso, eu sei.

    Com a fazenda vendida, não terei um canto para ficar. Serei a metáfora da agonia que é minha mente, sem cantos que me protejam. Só o sentimento de saber que me arrastei no fundo dos lamaçais por aquela mulher e não passei de um objeto, um meio para um fim. Maldita hora que a tirei do rio. Maldita hora em que salvei a desgraça que se abateu sobre minha carne. Talvez a exaustão emocional ou algum poder da noite me faz adormecer.

    E, num mundo outro, desperto...

    Raízes se espalham e formam paredes, paredes que correm pela escuridão formada por retalhos de noite, mas cheios de olhares inexplicavelmente luminosos. No centro, da sala de raízes, um trono ou altar, os dois são a mesma coisa. Gargalho de medo, uivo e tento escapar, acordar. Aquilo, sentado no trono, me olha; vê, em meu íntimo, todos os desejos. Me torno parte da coisa... ela aprende enquanto toca minha alma, tece encantos, destila sabores, sublima. Nove dedos de sua mão esquerda tocam meu peito. Seu hálito é fumaça acre e nevoeiro. Tonteio.

    Há amparo, o ar ao meu redor inibe minha queda. Formas se formam por debaixo de minha própria pele, a criatura ainda me observa, vários olhos, nenhum na face, todos me observam, me agitam como trapo na ventania. Ri, ri comigo e de mim, ri para mim. Sou presente, sou porta, sou a coisa esperada. Entendo. Não é inferno, é pior, mais denso, algo que dá origem a todas as lendas, algo que vive antes da humanidade ser plantada. Leio a história da família na pele do estranho ser. Leio seu assombro ao perceber o destino da fazenda. Barganhamos, saio perdendo, sempre se perde quando se bebe o abismo, entretanto há pequenas vitórias na sujeira e na derrota que podem saciar.

    Acordo. Não há mais lua no céu. Nuvens pesadas. A árvore agora é quente, quente pois sei as coisas que nela fluem. No celular a hora, faltam duas para o casamento. Passos firmes, risada insana, começa a chover sangue ao meu redor. Os céus também sabem o que sei. Vou tramando, nas línguas que aprendi, os tecidos da roupa que usarei no casamento. Meus gritos loucos atraem enxames de coisas escondidas desde que o homem aprendeu a usar o fogo. Hoje, nesta noite, Marília aprenderá que pagar somente com a vida é pouco.

 

 

Texto: Filipe Tassoni (Amarelo Carmesim)

Revisão: Morrigan Ankh

Imagem: foto manipulação por Amarelo Carmesim

Texto publicado originalmente no projeto: 100 Palavras por dia
 

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