sexta-feira, 10 de julho de 2020

Assinado em Lodo










Os horrores que se estendem por quilômetros na faixa de água que vai de Glória do Padre até Poço Finado são mais do que simples manguezais. Um bafo insinuante de odor salino e podre cobre toda região. Catei caranguejos, pesquei e morei naquele lugar esquecido por Deus e, seguramente, lembrado por todos os diabos. Eu tinha nove anos. Nunca esqueci. Foi antes de adoecer e ser mandado para São Paulo, viver na casa de tia Marlene, estudar no Liceu e deixar aquela vida para trás.

Comida pouca, pai que saiu para comprar cigarros e nunca voltou. Minha mãe apanhava muito de meu padrasto, Osnar. Quem neste mundo desgraçado tem um nome mais desgraçado do que Osnar? A fome roendo tripas, fui para o mangue catar alguns caranguejos. Comida difícil, animais ardilosos e difíceis de encontrar no meio do lodo. Pretos e rápidos, cavam fundo e se entocam. Mas não existe tino em cabeça de moleque com barriga vazia.

O fedor da morte, do podre, os atrai como moscas, e foi o cheiro que eu procurei até encontrar. Não que o manguezal inteiro cheirasse bem, porém alguns lugares conseguem ser piores no quesito mau cheiro. Ali, longe de tudo, com lodo até os joelhos perdi a noção de tempo e deixei, por burrice, ou fraqueza, que a noite me cobrisse naquele inferno de água, raízes, galhos retorcidos e podridão. Lua cheia já alta no céu quando percebi que era tarde, era longe e, na penumbra, senti um frio na espinha, um medo de ficar ali, um medo de voltar e enfrentar o bafo de Osnar, a cara triste da mãe e as desgraças que eram minha vida.

Tinha uns poucos caranguejos no cesto, mal dava para enganar o ronco do estômago. Foi quando ouvi um borbulhar que vinha do meio d’água barrenta. Em pouco tempo, aquilo cresceu, se alastrou. O chão, se é que é possível chamar aquele barro de chão, foi borbulhando ao redor dos meus pés e eu vi, vi aquilo ferver, aquele lodaçal se encheu de rodamoinhos onde vi dançarem restos de bichos e gente, ossadas, cascas, penas e conchas. A lua, com seu clarão, me permitia uma visão assombrosa daquele caldo grosso de podridão.

Medo foi grande, de longe menor do que quando percebi que meus pés não se mexiam, não conseguia fugir. Do meio daquela coisa o barulho de fervura e borbulho deu lugar a uma risadinha estranha, fechei os olhos e tentei rezar. Moleque que nunca rezou direito, quando tentei, senti o mijo quente escorrendo por entre as pernas. Dei sorte, se tivesse comida em casa teria sido pior. Ao redor das minhas pernas eu sentia como se raízes firmes me agarrassem.

Primeiro a lua iluminou uma cabeça embarrada, não era humana. Era uma coisa óssea suja. Depois um corpo foi brotando do meio daquele ventre de sujeira e lama. Não era corpo de gente, era inchado, sem algumas partes, outras eram compridas e torcidas. E ria. Gargalhava e fazia um barulho como de uma garganta cheia de água e barro. Um barulho que me dá aflição até hoje quando eu lembro. Eu sentia que, mesmo sem ter chifre ou olho vermelho, aquela coisa era um diabo, devia ser. Na minha cabeça de criança eu estava morto. Tentei rezar mais forte pois era o que restava. Preso, fodido, todo mijado e com fome.

Não sei quando começou, mas quando percebi minha cabeça doía, não era dor de cabeça comum, era como se alguém arrastasse um anzol por dentro do cérebro ou desfizesse os feixes de neurônios e colocasse sal entre eles. Não era dor, era o puro desespero. Acho que a coisa conseguia ver dentro da minha cabeça. Ela perguntou com uma voz de afogado se eu queria ir embora do mangue, sair da vila, virar gente, virar doutor.

Se eu achei que tudo estava ruim, ali tive certeza. Era diabo. De pronto me veio na cabeça a certeza. Era o diabo, ele queria minha alma em troca de algum pacto. Mas que merda era eu, um molequinho de quase dez anos que o mais longe que tinha ido era até Poço do Afogado, vila de comércio cheia de puteiros e lojas, quando a mãe foi comprar umas velas de acender aos pés da Virgem. Só sabia do mundo o que me ensinavam. Sem escola, sem coisa alguma. Rezava do jeito que sabia, pedia a Deus que matasse o Osnar ou devolvesse meu pai, ou para sair daqueles mangues sem fim que fediam mais do que minha própria merda. Aceitei. Era o diabo.

Não lembro de chegar em casa, não lembro. Acordei no chão da sala, do lado do fogão velho consertado com lata de querosene. Acordei sem saber onde estava, gritando, gritando. Sei que o diabo do lodaçal me tocou no ombro esquerdo e senti uma dor. Até hoje carrego uma marquinha preta como um sinal de nascença que não é meu de nascença. Adoeci na outra semana. Um tipo de raro de doença pulmonar que só podia ser tratado em São Paulo. Minha mãe me mandou ficar em casa de tia Marlene. A ideia era eu me tratar e ser empregado da casa caso não morresse. Não morri. O tratamento era dolorido, frequentei escola no outro ano. Anos de estudo. A Tia Marlene era uma viúva safada que me botava a lambê-la no início de minha estadia e a comer-lhe quando cresci um pouco.

Sobrevivi. A Escola Superior de Direito chegou com os anos. A tia morreu antes da formatura. Melhor! Não aguentava mais ter que comer aquela carniça velha. Casei com Raquel uns anos depois de formado, tive filhos. Agora estou às portas da morte. Câncer, iniciou no ombro esquerdo, naquele ponto preto. Tirando os nove que eu tinha, quando vi o lodo do mangue ferver, já são 80 anos dos quais o bicho do lodaçal cumpriu seu trato. Acho que agora começa minha parte do pagamento. Cada dia que passa, por cima do cheiro de hospital, eu sinto o cheiro de lodo do manguezal vindo me buscar. Estudei Direito e sei que deste contrato não posso fugir.


História: Filipe Tassoni 
Revisão: Morrigan Ankh
Artes: Filipe Tassoni

 

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