A
vida não foi bela para Adauto. Para os padrões sociais, era um perdedor; para
os colegas de trabalho, um esquisito sonhador de sonhos inúteis. Sua mesa na
repartição era soterrada por pilhas de trabalho que ninguém queria fazer. Sua autoestima
foi sendo esmagada ao longo dos anos por uma chefe ardilosa e colegas que
viviam de aspectos felizes postados em redes sociais. O veneno diário, as
manipulações e os pequenos terrorismos o levaram até o Campo dos Modilhões. O
corpo cansado desceu do ônibus. Joelhos e costas, sempre doloridos, faziam dele
um homem jovem com dores de velho.
Modilhões
era uma zona nos arredores da antiga capital. O mundo cresceu, evoluiu, mas a
velha área rural que ao longo dos anos se tornou uma mistura de arrabaldes e
velhas chácaras esquecidas, não. Adauto caminhou na imensidão de matas e
estradas não asfaltadas sem saber ao certo como chegar ao lugar que buscava.
Tinha uma descrição pouco apurada dada por uma antiga funcionária do Instituto
onde trabalhava, uma instrução ouvida três anos antes. Três anos remoendo se
deveria ou não se consultar com Mama Sauvaton. Era próprio dele remoer e
ponderar, desistir e tentar se proteger do fracasso com o manto da inatividade.
Na
época, Cleudis, a senhora que fazia a faxina no lugar era a única alma com quem
conversava normalmente. Os últimos três anos, após sua aposentadoria, foram
mais tristes sem ter com quem conversar. Foi essa que, num cochicho, explicou
quem era Mama Sauvaton e que esta podia fazer favores por alguns preços não
muito altos. Favores que poderiam tirar Adauto daquela vida ruim, daquele
terror que vivia todos os dias. Com sua confidente, ambos chegavam antes dos
colegas, Adauto podia ser ele mesmo. Falava de sua inquietação, sua ansiedade.
Falava sobre as maldades diárias que os outros praticavam contra ele, contra os
que eram atendidos pelo Instituto. Afinal, secretarias públicas deveriam servir
e não extorquir o contribuinte.
Na
estrada de chão batido amarelo avermelhado, seus passos eram apenas abafados
pelo murmúrio das cigarras loucas com o calor que se fixavam nas árvores
retorcidas e agonizantes com o calor do meio-dia. Percorrendo três quilômetros
de propriedades destruídas, roídas pelo tempo e cobertas por vegetação, chegou
a uma parte mais sombria do caminho. Modilhões é calor e umidade. Insalubre,
ermo e cheio de sombras que evitam a luz mesmo expostas ao sol do meio-dia. O
mato alto escurecia uma porteira comida por cupins. O lugar era aquele. Uma
placa antiga, apodrecida pelos anos e queimada pelo sol ostentava as palavras:
“Mama Salvation”.
Adauto
entendeu que Sauvaton era a forma como o povo do lugar devia pronunciar a
palavra, ele mesmo buscava salvação, entretanto, ao olhar o capim escuro e o
casebre antigo com uma aura de abandono, perdeu qualquer esperança. Ia dar o
fora do lugar. Foi quando viu o menino. Não soube de onde a criatura saiu, não
havia viva alma nas proximidades. A criança suja, raquítica, ostentando não
mais do que seis anos, disse que Mama o aguardava. Naquela hora, o ceticismo se
revelou em sua mente. Claro que esperava, era a promessa de algum dinheiro, o
menino devia ter uma fala ensaiada para qualquer pessoa. Ademais, vivendo
naquele lugar, a Mama parecia precisar urgentemente de alguma salvação.
Entrou,
ao menos ficar à sombra seria melhor do que voltar no mesmo sol em que veio e,
ainda, esperaria por, no mínimo, duas horas pelo próximo ônibus. O solo ao
redor da casa estava encharcado demais até para Modilhões, estranhou sentir-se
afundando a cada passo. O menino sem nome abriu a porta e o deixou entrar. Não
entrou junto, apenas limitou-se a fechar a porta. Deixou o saibro vermelho
amarelado para trás e adentrou na tapera carcomida pelo tempo. Adentrou,
imaginaria, bem depois, nas entranhas do próprio tempo.
Adauto,
chocado com a visão de tantas velas acesas ao redor de uma cama antiga, tentou
ainda pensar em sair do lugar, em partir daquela armadilha, mas o som da
respiração de Mama Salvation inundou o cômodo pequeno que parecia ser todo o
interior da casa. Não era respiração de gente ou fera, era como se algo embaixo
da terra respirasse ecoando dentro do casebre. Notou que havia uma atmosfera
diferente no lugar. Um cheiro de algo decomposto, maresia, misturado ao
estagnado azedo do sebo das inúmeras velas. Aquilo não devia ser saudável,
pensou.
Deitada
sobre a cama, imóvel, Mama Salvation era uma monstruosidade coberta de peles.
Peles cobertas por uma estranha oleosidade, muita pele, cobrindo a cama. Não
era uma coberta. Era algo que escorria quase até o chão. O corpo no centro. Os
olhos baços de uma cor amarelada, fundos. Braços, pernas, tudo afundado naquela
massa, brilhante como uma graxa. Repulsa e terror, sentiu daquele corpo que
pingava algo viscoso que umedecia o chão e, como a casa fora erguida direto
sobre o chão batido, umedecia a própria terra.
Sem
falar, sem abrir a boca miúda naquela extensão de carnes e peles, a criatura
falou. Falou direto com a mente de Adauto. Os joelhos dobraram, sentiu o solo
frio neles, o calor das velas próximo ao rosto. Muitas velas, pensou ainda.
Embaixo da cama, algo chamava a atenção de zonas ainda ativas de seu cérebro.
Algo como um buraco, um fosso. Quem escavaria um buraco daqueles e deitaria em
cima? Mama Sauvaton. Mama Salvation. Mama.
Não
precisou que o menino abrisse a porta. Já era manhã do outro dia quando tomou o
rumo. Naquela semana, as coisas mudaram no trabalho. A doença grave e repentina
da chefe e o sangramento ocular de uma das colegas o fez mais tranquilo. O
departamento começou a ter os funcionários trocados pelo novo chefe. Homem
íntegro, diferente. Focado no trabalho como Adauto era no início da carreira. A
vida se tornou mais fácil. As dores físicas foram diminuindo.
A
sorte mudou, era palpável que agora tinha sorte na vida. Logo engrenou um
relacionamento com uma colega nova no setor. Destrancou a faculdade no meio do
ano. Não era sombra do que havia sido. Não era mais aquele homem. Perdera-se
num momento de vida e deixou-se manipular por aquela gente desgraçada. Agora
era dono de seu destino. Devia tudo àquela criatura, Mama Salvation e ao que
repousava no fundo daquele fosso embaixo da cama. O preço não era alto. Era um
homem de sorte, sempre sabia onde conseguir as crianças que levava para
conhecer sua benfeitora.
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