sexta-feira, 1 de maio de 2020

Panimalos


O espírito acende a vela



 A criatura acendeu a chama da pequena vela de sebo fedido, amarelado. A mínima luz cobriu de palidez o interior da sala imunda. Excrementos secos, manchas ferruginosas de sangue coagulado pontuavam o chão. Vermes e outros miasmas se alimentavam ali. Nas paredes, um fungo pontilhado por coisas como córneas cegas; pálidas, tumorava em abundância.

O cheiro cáustico da vela perturbou as narinas de Grasya logo após seus olhos serem feridos pelo brilho do fogo diminuto. Deitada no chão, acompanhada apenas pelos milhares de pequenos insetos; que povoavam o cárcere desde muito antes dela chegar ali e que agora rastejavam por sua pele se entretendo em roer-lhe as fibras dos cabelos que ainda teimavam em crescer; a mulher vislumbrou a entidade que lhe aprisionava. Cinzenta, impassível.

Se encolheu, tentou protestar, mas o ser já começara a oração naquela língua que ardia nos sentidos como um fel que escorre por entre estrelas frias. Aguardou, então, encolhida, não era medo, era algo maior. Um pavor que triturava alma e ossos.

O ser se aproximou com gestos metódicos, calculados. E, como quem conhece muito bem os ritos, começou a descrever cada um dos crimes cometidos pela prisioneira. A cada palavra, a cela, enegrecida pelo tempo, parecia ficar menor. Era como se algo vivo naquelas paredes segurasse a respiração.

Mentira, conspiração, profanação, traição. Após cada palavra proferida o algoz estalava a língua, estalava a língua como quando se estala um chicote. As palavras seguiam como procissão. Após, como era desde o início, começou o chiado que sua respiração arrastada produzia antes de narrar cada um dos atos que levaram Grasya àquela condição.

O som metálico do cutelo coberto de ferrugem e sangue seco sendo amolado contra as pedras se misturava àquela respiração. O gelo de pavor, a ansiedade pelo porvir, fizeram criminosa e ambiente calarem por completo. Enquanto agarrava o braço da mulher cada parte do rosto punidor permanecia sem expressão. Ainda sem esboçar sentimentos esmagou e cortou o osso do terceiro dedo, rente à mão, com maestria própria de um flagelo que atravessa o tempo.

Num sopro rápido a vela apagou para somente brilhar no dia seguinte. Fez-se silêncio na escuridão para ouvir o choro da amputada. Ainda restavam dois dedos. Mais dois dias para o final daquele ciclo. Grasya sabia que, após o último corte, seria obrigada a sorver a bebida amarga que lhe mantinha viva e fazia brotar novos dedos para que seu tormento eterno continuasse.




Texto: Filipe Tassoni
Revisão: Morrigan Ankh
Imagem: Filipe Tassoni

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