domingo, 16 de maio de 2021

Aqueles que não vemos - I


 

Aqueles que não vemos – I

Maltucs

 

Despertou no exato instante que Michele fechou a porta. Ouviu, ainda, a chave girando no mecanismo, uma, duas vezes. Marcos sempre saía antes da esposa, sempre duas horas antes. O Maltuc esfregou as mãos enquanto terminava de acordar as partes do corpo. Era hora de descer, ler o jornal que Michele deixava sempre sobre a mesa da sala; alimentar-se um pouco e fazer a ronda.

Antes, como ato compulsório, observou a tela do celular e, no pouco brilho, viu mensagens no grupo da família. Arregalou os olhos e os grânulos negros de dentro de suas órbitas se expandiram. Conseguia, então, entender os algarismos e símbolos aleatórios e torcia o lábio de preocupação. Lúcio convocava todos para uma reunião. Irritante juntar os seis da cidade assim. Não eram seres sociais, nem coletivos, reuniões eram problemáticas. Gostavam mesmo da evolução da humanidade, celulares eram um bom brinquedo para conversar com os outros familiares, usando símbolos e regras que só uma mente de seu povo conseguia entender. Afinal, ninguém da empresa telefônica ou de qualquer órgão de governo decifraria a comunicação em códigos de sua espécie.

Suspirou... era bom se preparar, sua irmã “Sefh-olhos-demais” estaria lá e tinha um cheiro ruim.

        Abriu o vão entre as tábuas do forro da casa e escorreu para o chão. No caminho, já tomava uma forma que se aproximava de um humano, mas mais alto, membros mais compridos, mais numerosos; e uma expressão endurecida como couro seco ornando o que seria sua face. Cheirou a casa, Michele e Marcos não estavam, mas seus odores corporais eram sentidos. Depois visitaria o cesto de roupa suja para sorver mais um pouco daquela vida.

Andou ou escorreu, afinal sua forma era entre o sólido e o fluído, chegando à sala. Sentou na poltrona impregnada pelo sabor e cheiros da mulher, gostava da forma como os cabelos perdidos dela, presos ao estofado, encostavam em suas costas nuas e faziam promessas de uma plenitude que só o corpo dos vivos possui. Leu devagar o jornal, leu cada notícia como se fosse um evento. Pernas cruzadas, refletindo e analisando enquanto assoviava baixinho uma música que aprendera num navio durante a Segunda Guerra.

Leitura completa, deixou o jornal exatamente no mesmo lugar. O dom de sua espécie lhe permitia saber onde cada coisa deveria ficar apenas por ter olhado previamente o objeto ocupando um espaço. Começou a ronda, a louça suja na pia da cozinha, a torneira ainda pingando. Observou a cena com deleite, vendo a marca de batom no copo, o resíduo de iogurte de ameixa no fundo, as facas sujas de geleia e manteiga. Após uma infinidade de minutos respirando aquela cena, deglutindo aquela desorganização tão humana, foi capaz de quebrar o encanto um pouco. Entretanto, logo se percebeu encostando a ponta de uma de suas unhas no copo sujo e fazendo movimentos circulares acompanhando sua borda. Era saboroso, era vida, era tão cheio de caos.

            Fez o mesmo na privada com as gotículas de urina, com os pelos pelo chão do banheiro e nos respingos d’agua perto dos vasos com plantas que Marcos insistia em regar todos os dias. Observou pela janelinha alta, tornando seu corpo alongado como uma cobra que contornava toda a basculante, e viu a criança do vizinho andando pelo pátio ao lado, teve nojo. Não era um de seus humanos, não havia relação. Não havia sentimento por aquela vida.

Como sempre, levou horas na meditação de várias partes da casa, não precisava do rito todos os dias, mas sempre que o fazia, sorvia as emoções, as cenas, os sabores de cada um daqueles momentos de vida. Seus pés tocavam hora no piso e hora nas paredes e, no entrelaçar de sensações, podia sentir cada gosto, cada nuance. Era como se pintasse em sua mente uma obra de arte para depois devorar cada milímetro.

O ápice, sempre deixado para o final, era o cesto de roupas sujas, havia ali algo de belo, de sublime, era o cheiro da carne, os odores viscerais de seus humanos. Escolhera Marcos e Michele há dois anos e vivia uma relação de profundo amor, e posse, com estes. Vestiu nas narinas os odores das roupas de dormir do casal, o suor, os alumbramentos que os sonhos causavam e toda sorte de humores e fluídos que naquelas peças de roupa podiam existir.

Nas roupas de trabalho da mulher, encontrou os resíduos da aula do dia anterior, crianças humanas, cheiros das ruas e dos veículos, cheiros da queda do crepúsculo e do cansaço. Cada pedacinho de vida era um deleite. Nas roupas de Marcos sentiu as nuances da empresa, os cheiros de colegas e depois uma nota de vinho barato, cheiros de um quarto que não era da casa e de uma companhia que não era Michele. Sentiu ódio do homem, sentiu algo que uma criança sentiria se um de seus brinquedos lhe traísse. Era um cheiro que já havia aprendido a identificar, era uma colega de trabalho de Marcos. Guardou as roupas nas mesmas formas dobradas e bagunçadas que os humanos fazem com a roupa suja.

Escorreu, flutuou pelas paredes e pelo tempo da casa até a cozinha, abriu a geladeira e se deixou levar pelo frio e cheiro de vegetais em suava decomposição, a alface não prestava mais para consumo humano, mas a negligência a mantinha ali há dois dias, uma das maçãs, no fundo da gaveta, estava murcha e perdida por mais tempo. Sentado, geladeira aberta, pensamentos quentes. Ódio de Marcos. Como teria uma família perfeita assim?  Logo agora que tinha planos de fazer nascer um bebê e ter mais um ocupante na habitação?

A raiva desfigurava e reconfigurava as formas, Maltucs eram assim sua condição moral afetava seu corpo físico. Se concentrou numa mancha de um respingo no fundo da geladeira, era molho, algo que sujava a parede fria e branca. A nódoa vermelha parecia um respingo de sangue e trouxe ideias. Teve ideias. A geladeira, sem dúvida, era o melhor lugar da casa para observar e pensar.  Sem amante, sem problemas! Sua mente era rápida, ainda tinha a maldita reunião na semana. Não podia contar à família que seus humanos estavam com um problema. Não podia!

Voltou às roupas sujas, pegou cheiros e criou, com seus poderes, uma forma de achar o elemento que perturbava a sua equação familiar perfeita, aquela mulher que ousava acabar com sua família. No pente de Marcos, juntou cabelos suficientes para engolir e começar a assumir a forma do homem. Não gostava daquele recurso, mas era necessário. Vestiu algo do homem no guarda-roupas embora soubesse que não seria visto por pessoas ou câmeras pois sabia os truques da manipulação do tempo, queria que a mulher visse o rosto de Marcos sorrindo enquanto sua vida se esvaísse e usar a roupa dele ajudaria a compor o quadro. Depois maltrataria o traidor também, podia tecer pesadelos e fazer horrores demais numa alma se ficasse revoltado como estava.

Usou algumas moscas que sobrevoavam as bananas da bandeja de frutas na mesa da cozinha e, com seus corpos sacrificados e um pouco dos próprios fluídos corporais, forjou uma chave para abrir e fechar a casa. Saiu. Sabia o que fazer, voltaria mais tarde, voltaria antes que Michele e Marcos chegassem.

  

 

Texto: Filipe Tassoni 

Revisão: Morrigan Ankh

Imagem: Filipe Tassoni

 



 

LEIA MAIS

sábado, 24 de outubro de 2020

Meu Bebê




    

 

     Sinceramente, eu preferia estar morando na cidade grande e não nessa pocilga, pequena e afastada de tudo, chamada de Campo Verde.  Sim, cidades pequenas são muito comuns por aqui, mas as grandes oportunidades sempre estão fora das cidades pequenas! Afinal, são “grandes possibilidades” e se contentar com pequenas migalhas é para pessoas que adoram viver nesses pequenos vilarejos.

    A paz típica desse lugar foi varrida para debaixo do tapete já fazem duas semanas, se meus pais tivessem me ouvido anos atrás e todos tivéssemos nos mudado para uma cidade grande, minha irmã não estaria passando pela situação para qual a maldita entropia a arrastou.

    Ela deu à luz a meu sobrinho há mais ou menos um mês, um pequenino de olhos brilhantes e bem atentos chamado Allen. Infelizmente, faz uma semana que ele desapareceu, pela manhã quando minha irmã foi pegá-lo no berço, não tinha nada além das cobertas reviradas e espalhadas.

    Lindsay, minha irmã, teve um ataque histérico, os gritos acordaram Roy, seu marido, que a encontrou aos prantos procurando por Allen e dizendo que a culpa era dele de o bebê ter sumido. Não foi um fato isolado, mais três bebes sumiram nessas duas semanas na cidade, a polícia colocou um alerta de uma possível quadrilha que estava fazendo esses sequestros.

    Tudo começou a desmoronar, minha irmã teve que ser internada e ficou uma semana presa a uma cama de hospital sendo sedada para conseguir acalmar os nervos, Roy pode ser encontrado no pub todo final de tarde, afogando suas angustias em um copo da bebida mais forte que tiver no momento. Meus pais ao verem a sua filhinha nesse estado entraram numa paranoia gigante, Lindsay não para de abraçar as roupas de seu filho e ficar repetindo: “meu bebê”, com lágrimas caindo pelos olhos e pingando em cima das únicas lembranças que tem de Allen.

    Sem saber o que fazer, fiquei trancado em casa, assustado.  À noite, fico olhando pela janela para ruas vazias e quietas do nosso vilarejo, não consigo dormir desde o incidente, sinto como se algo me vigiasse, noite após noite, e um medo ancestral, que não consigo descrever, percorre minha espinha deixando os cabelos da nuca em pé, e me deixa no mais avançado estado de alerta.

    Minha mãe me convenceu de convidar Lindsay para passar conosco um tempo, ficar sozinha em casa, remoendo as memórias, não vai trazer Allen de volta, todos tentaram convencer-lhe de ir para casa de nossos pais, mas ninguém conseguiu, parece que sou a última esperança dos meus velhos. Antes passei no pub para verificar se Roy concordava com nossa ideia, em meio a suas lamúrias, algo me chamou atenção, Lindsay também estava com a mesma sensação que sinto todas as noites desde antes de Allen sumir, por isso não quis deixar o bebê nenhuma noite no berço desde que voltou do hospital.

    Meu cunhado é muito cabeça dura e insistiu que o bebê deveria acostumar a dormir sozinho, mesmo protestando, minha irmã concordou porque Roy disse que compraria uma babá eletrônica no outro dia. Antes de apagar no balcão de tanto álcool que ingeriu, Roy sugeriu que talvez a culpa era dele mesmo, em insistir para Allen dormir longe deles.

    Não importa, já faz cinco minutos que estou na frente da porta da casa de Lindsay criando coragem de chamar por ela. Minhas mãos estão suando frio, nunca senti isso antes. Respirando fundo, começo a bater na porta e chamar pela minha irmã, mas cada minuto que se passa, pela demora para abrir, sinto uma angustia crescer, vindo direto de meu ventre e subindo até a garganta, o gosto amargo e ardência na minha garganta me fazem engasgar, algo deve estar errado. Quando giro a maçaneta, a porta está aberta. A passos rápidos encontro Lindsay, sentada no sofá da sala. A televisão nesse momento transmite somente estática, a luz da sala está apagada e a iluminação precária que o aparelho propicia deixa tudo em tons de cinza.

    Lentamente me aproximo da minha irmã chamando baixo por seu nome, seus olhos estão vidrados para cima e o pescoço pendendo levemente para direita, um frasco de remédios ainda está firme em sua mão esquerda, não sinto nenhuma reação vindo de seu corpo. Não pode ser! Ela não tomou todo o frasco! Assustado, a dor em minha barriga fica mais forte, caio no chão me retorcendo, sinto o café da tarde sendo regurgitado no chão frio e escuro, quando consigo me recuperar, ao vislumbrar a poça no chão, ela está repleta de olhos todos vidrados na minha direção e então, aquela massa disforme semelhante a algo vindo direto de algum pesadelo insano sorri em escarnio para toda situação...

 

 

Conto por: Rafael Damacena
Editor do Vale das Trevas 
Colaborador do Só não Critica
Revisão textual : Equipe Amarelo Carmesim
 
 

 Temos a contribuição de nosso amigo Rafael para o Amarelo Carmesim, nosso pequeno mundo vai crescendo, agora temos um vislumbre do que acontece na cidade de Campo Verde. Aguardemos mais atualizações e notícias destas pobres almas.

 

LEIA MAIS

sábado, 5 de setembro de 2020

Surpresas

   

Figueira no mato raízes no inferno


     Ficus organensis ou apenas Figueira do Mato, minha avó dizia que as raízes desta árvore mantinham as portas do inferno fechadas. Que, não importava onde se plantasse, as pontas das raízes sempre iam afundando até chegar numa porta de pedra onipresente. Cá estou, cabeça escorada na árvore das lendas das avós de minha família. Lua cheia no céu, chega a tingir de carmesim as poucas nuvens. Será que até a lua compartilha de minhas mágoas? Marília casa nesta noite. Marília... tanta dor, maldita Marília. Noite quente, noite infeliz. Não é amor, é ódio, raiva, talvez inveja da forma como conseguiu arrasar minha alma e ainda sair como vítima de toda situação. Faz bem escorar a cabeça na figueira do inferno e chorar. Logo a árvore será cortada. Marília venderá tudo, Carlos fará isso, eu sei.

    Com a fazenda vendida, não terei um canto para ficar. Serei a metáfora da agonia que é minha mente, sem cantos que me protejam. Só o sentimento de saber que me arrastei no fundo dos lamaçais por aquela mulher e não passei de um objeto, um meio para um fim. Maldita hora que a tirei do rio. Maldita hora em que salvei a desgraça que se abateu sobre minha carne. Talvez a exaustão emocional ou algum poder da noite me faz adormecer.

    E, num mundo outro, desperto...

    Raízes se espalham e formam paredes, paredes que correm pela escuridão formada por retalhos de noite, mas cheios de olhares inexplicavelmente luminosos. No centro, da sala de raízes, um trono ou altar, os dois são a mesma coisa. Gargalho de medo, uivo e tento escapar, acordar. Aquilo, sentado no trono, me olha; vê, em meu íntimo, todos os desejos. Me torno parte da coisa... ela aprende enquanto toca minha alma, tece encantos, destila sabores, sublima. Nove dedos de sua mão esquerda tocam meu peito. Seu hálito é fumaça acre e nevoeiro. Tonteio.

    Há amparo, o ar ao meu redor inibe minha queda. Formas se formam por debaixo de minha própria pele, a criatura ainda me observa, vários olhos, nenhum na face, todos me observam, me agitam como trapo na ventania. Ri, ri comigo e de mim, ri para mim. Sou presente, sou porta, sou a coisa esperada. Entendo. Não é inferno, é pior, mais denso, algo que dá origem a todas as lendas, algo que vive antes da humanidade ser plantada. Leio a história da família na pele do estranho ser. Leio seu assombro ao perceber o destino da fazenda. Barganhamos, saio perdendo, sempre se perde quando se bebe o abismo, entretanto há pequenas vitórias na sujeira e na derrota que podem saciar.

    Acordo. Não há mais lua no céu. Nuvens pesadas. A árvore agora é quente, quente pois sei as coisas que nela fluem. No celular a hora, faltam duas para o casamento. Passos firmes, risada insana, começa a chover sangue ao meu redor. Os céus também sabem o que sei. Vou tramando, nas línguas que aprendi, os tecidos da roupa que usarei no casamento. Meus gritos loucos atraem enxames de coisas escondidas desde que o homem aprendeu a usar o fogo. Hoje, nesta noite, Marília aprenderá que pagar somente com a vida é pouco.

 

 

Texto: Filipe Tassoni (Amarelo Carmesim)

Revisão: Morrigan Ankh

Imagem: foto manipulação por Amarelo Carmesim

Texto publicado originalmente no projeto: 100 Palavras por dia
 

LEIA MAIS

domingo, 9 de agosto de 2020

Gestação

Ovo maligno


 


    Lina detestou a atividade escolar de carregar um ovo por meses. Odiou tanto que depositou, gota a gota, toda sua frustração naquela maciez envolta em dura casca. Numa noite morna de verão, enquanto tempestades murmuravam no horizonte, algo faminto chocou.

 

Autor: Amarelo Carmesim

Revisão: Morrigan Ankh

 

LEIA MAIS

sexta-feira, 10 de julho de 2020

Assinado em Lodo










Os horrores que se estendem por quilômetros na faixa de água que vai de Glória do Padre até Poço Finado são mais do que simples manguezais. Um bafo insinuante de odor salino e podre cobre toda região. Catei caranguejos, pesquei e morei naquele lugar esquecido por Deus e, seguramente, lembrado por todos os diabos. Eu tinha nove anos. Nunca esqueci. Foi antes de adoecer e ser mandado para São Paulo, viver na casa de tia Marlene, estudar no Liceu e deixar aquela vida para trás.

Comida pouca, pai que saiu para comprar cigarros e nunca voltou. Minha mãe apanhava muito de meu padrasto, Osnar. Quem neste mundo desgraçado tem um nome mais desgraçado do que Osnar? A fome roendo tripas, fui para o mangue catar alguns caranguejos. Comida difícil, animais ardilosos e difíceis de encontrar no meio do lodo. Pretos e rápidos, cavam fundo e se entocam. Mas não existe tino em cabeça de moleque com barriga vazia.

O fedor da morte, do podre, os atrai como moscas, e foi o cheiro que eu procurei até encontrar. Não que o manguezal inteiro cheirasse bem, porém alguns lugares conseguem ser piores no quesito mau cheiro. Ali, longe de tudo, com lodo até os joelhos perdi a noção de tempo e deixei, por burrice, ou fraqueza, que a noite me cobrisse naquele inferno de água, raízes, galhos retorcidos e podridão. Lua cheia já alta no céu quando percebi que era tarde, era longe e, na penumbra, senti um frio na espinha, um medo de ficar ali, um medo de voltar e enfrentar o bafo de Osnar, a cara triste da mãe e as desgraças que eram minha vida.

Tinha uns poucos caranguejos no cesto, mal dava para enganar o ronco do estômago. Foi quando ouvi um borbulhar que vinha do meio d’água barrenta. Em pouco tempo, aquilo cresceu, se alastrou. O chão, se é que é possível chamar aquele barro de chão, foi borbulhando ao redor dos meus pés e eu vi, vi aquilo ferver, aquele lodaçal se encheu de rodamoinhos onde vi dançarem restos de bichos e gente, ossadas, cascas, penas e conchas. A lua, com seu clarão, me permitia uma visão assombrosa daquele caldo grosso de podridão.

Medo foi grande, de longe menor do que quando percebi que meus pés não se mexiam, não conseguia fugir. Do meio daquela coisa o barulho de fervura e borbulho deu lugar a uma risadinha estranha, fechei os olhos e tentei rezar. Moleque que nunca rezou direito, quando tentei, senti o mijo quente escorrendo por entre as pernas. Dei sorte, se tivesse comida em casa teria sido pior. Ao redor das minhas pernas eu sentia como se raízes firmes me agarrassem.

Primeiro a lua iluminou uma cabeça embarrada, não era humana. Era uma coisa óssea suja. Depois um corpo foi brotando do meio daquele ventre de sujeira e lama. Não era corpo de gente, era inchado, sem algumas partes, outras eram compridas e torcidas. E ria. Gargalhava e fazia um barulho como de uma garganta cheia de água e barro. Um barulho que me dá aflição até hoje quando eu lembro. Eu sentia que, mesmo sem ter chifre ou olho vermelho, aquela coisa era um diabo, devia ser. Na minha cabeça de criança eu estava morto. Tentei rezar mais forte pois era o que restava. Preso, fodido, todo mijado e com fome.

Não sei quando começou, mas quando percebi minha cabeça doía, não era dor de cabeça comum, era como se alguém arrastasse um anzol por dentro do cérebro ou desfizesse os feixes de neurônios e colocasse sal entre eles. Não era dor, era o puro desespero. Acho que a coisa conseguia ver dentro da minha cabeça. Ela perguntou com uma voz de afogado se eu queria ir embora do mangue, sair da vila, virar gente, virar doutor.

Se eu achei que tudo estava ruim, ali tive certeza. Era diabo. De pronto me veio na cabeça a certeza. Era o diabo, ele queria minha alma em troca de algum pacto. Mas que merda era eu, um molequinho de quase dez anos que o mais longe que tinha ido era até Poço do Afogado, vila de comércio cheia de puteiros e lojas, quando a mãe foi comprar umas velas de acender aos pés da Virgem. Só sabia do mundo o que me ensinavam. Sem escola, sem coisa alguma. Rezava do jeito que sabia, pedia a Deus que matasse o Osnar ou devolvesse meu pai, ou para sair daqueles mangues sem fim que fediam mais do que minha própria merda. Aceitei. Era o diabo.

Não lembro de chegar em casa, não lembro. Acordei no chão da sala, do lado do fogão velho consertado com lata de querosene. Acordei sem saber onde estava, gritando, gritando. Sei que o diabo do lodaçal me tocou no ombro esquerdo e senti uma dor. Até hoje carrego uma marquinha preta como um sinal de nascença que não é meu de nascença. Adoeci na outra semana. Um tipo de raro de doença pulmonar que só podia ser tratado em São Paulo. Minha mãe me mandou ficar em casa de tia Marlene. A ideia era eu me tratar e ser empregado da casa caso não morresse. Não morri. O tratamento era dolorido, frequentei escola no outro ano. Anos de estudo. A Tia Marlene era uma viúva safada que me botava a lambê-la no início de minha estadia e a comer-lhe quando cresci um pouco.

Sobrevivi. A Escola Superior de Direito chegou com os anos. A tia morreu antes da formatura. Melhor! Não aguentava mais ter que comer aquela carniça velha. Casei com Raquel uns anos depois de formado, tive filhos. Agora estou às portas da morte. Câncer, iniciou no ombro esquerdo, naquele ponto preto. Tirando os nove que eu tinha, quando vi o lodo do mangue ferver, já são 80 anos dos quais o bicho do lodaçal cumpriu seu trato. Acho que agora começa minha parte do pagamento. Cada dia que passa, por cima do cheiro de hospital, eu sinto o cheiro de lodo do manguezal vindo me buscar. Estudei Direito e sei que deste contrato não posso fugir.


História: Filipe Tassoni 
Revisão: Morrigan Ankh
Artes: Filipe Tassoni

 
LEIA MAIS